02 agosto 2009

Os Ombros Suportam o Mundo

Hoje, a poesia de Carlos Drummond de Andrade


Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.

Tempo de absoluta depuração.

Tempo em que não se diz mais: meu amor.

Porque o amor resultou inútil.

E os olhos não choram.

E as mãos tecem apenas o rude trabalho.

E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.

Ficaste sozinho, a luz apagou-se, mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.

És todo certeza, já não sabes sofrer.

E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?

Teu ombros suportam o mundoe ele não pesa mais que a mão de uma criança.

As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios provam apenas que a vida prossegue e nem todos se libertaram ainda.

Alguns, achando bárbaro o espetáculo, prefeririam (os delicados) morrer.

Chegou um tempo em que não adianta morrer.

Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.

A vida apenas, sem mistificação.

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